Recentemente, dois comentários levantaram questões bastante interessantes e pertinentes sobre o tema bushcraft, em um de meus vídeos no Youtube, no qual Humberto Costa e eu apresentamos nossas opiniões sobre certos aspectos dessa prática. 

O interessante é que eu não vejo discrepâncias entre os pensamentos expostos nos comentários e aquilo que Humberto Costa, eu e outros entendemos sobre as artes do mato no Brasil. Na verdade, tratam-se de vários ângulos e percepções, considerando aspectos pessoais e culturais distintos. As abordagens geradas podem variar no que diz respeito a sua dinâmica, no entanto, acabam tendo como foco principal as mesmas questões. 

Diante disso, pode-se dizer que a atividade de bushcraft está muito relacionada a aspectos pragmáticos e práticos, levando em consideração seu propósito.

O autor do primeiro comentário, por exemplo, diz o quanto a sua percepção está associada ao uso do bushcraft como uma ferramenta auxiliadora em situações de sobrevivencialismo. Concordo plenamente com essa abordagem, tendo em vista que as técnicas de bushcraft podem desempenhar papéis secundários (por razões que não valem ser ditas no momento), assim como nas mencionadas. Durante muitos anos eu segui essa abordagem mais pragmática do bushcraft, até o momento em que conheci o trabalho do “Cadu” e sua escola do mato. 

Vale a pena ressaltar que vários autores, tais como David Canterbury e Ray Mears, possuem obras voltadas para a utilização das técnicas de bushcraft em situações de sobrevivência, o que, de fato, pode ter um grande valor nesses momentos. 

E como bushcraft não é uma religião, no sentido dogmático da palavra, é perfeitamente possível e aceitável que certos grupos de praticantes se relacionem com a atividade a partir desse viés mais pragmático em uma situação de sobrevivência.

Já o segundo comentário, também compartilha dessa opinião sobre o caráter mais prático e proposital do bushcraft, contudo, coloca outras observações mais críticas sobre a atividade, como a contemplação. Nesse caso, ela não seria parte da atividade do bushcraft e acabaria por tornar o termo muito abrangente, o que retiraria sua identidade, já que não haveria um propósito tangível. 

Ou seja, bushcraft, só com o “bush” (mato), sem algo do “craft” (técnicas e equipamentos) não seria bushcraft.

Eu compreendo a posição e o entendimento dele e de outras pessoas que apontam estes aspectos, todavia, eu percebo isso de uma forma diferente. Para explicar isso, tentarei resumir os fundamentos do termo bushcraft para mim.

Partindo de uma visão mais ampla, a atividade de bushcraft engloba aspectos do conhecimento humano, relacionados a várias áreas, como biologia (estudos de flora e fauna), a geografia, a geologia, a arqueologia, além dos conhecimentos e técnicas de construção de adobe, de trabalhos artesanais diversos, de usos e manuseios de ferramentas diversas, entre outros.

No entanto, eu me pauto muito por certos conceitos trazidos por Ray Mears e que me ajudam a nortear e expandir bastante termo “bushcraft”. Segundo ele, o bushcraft é conceituado como “o conhecimento e o entendimento do mundo natural, que carregamos em nossos músculos”. Para ele, o bushcraft dialoga tanto com o passado, quanto com o contemporâneo. Ou seja, trata-se de uma mistura das antigas tradições com as abordagens mais atuais.

Partindo dessas bases, eu percebo a atividade de contemplação (em que você não estará produzindo algo material, em si), assim como o scouting, ou a caminhada de reconhecimento, como aspectos que estão ligados, sim, ao bushcraft. Ocorre que, isso acontece de forma diferente, visto que tais aspectos não tiram sua essência, além de enriquecer e fortalecer a prática da atividade mateira. 

As duas atividades mencionadas por mim, dizem respeito a passar um longo tempo observando a natureza. Dessas observações derivam percepções sutis sobre o ambiente, clima, relevo, fauna e flora que, em última instância, aumentam e ampliam o “conhecimento e o entendimento do mundo natural”, como dito por Ray Mears. 

Em outras palavras, se o meu “bush” é forte, assim, também será meu “craft”.

Tais aspectos não estão necessariamente relacionados à prática de uma técnica específica, como navegar por estrelas ou entalhar um objeto. Mas ainda assim, oferecem uma reconexão mais ímpar e profunda com a natureza, do que se a pessoa estivesse fazendo coisas apenas para dizer: “Olhem! Estou praticando bushcraft!”.

Além disso, existe um risco em se focar demais no “craft” ou nas técnicas em si, uma vez que as pessoas poderiam a passar a ir para o mato e a derrubar árvores, cortar plantas e se comportarem de maneira danosa ao meio, por desconhecerem as dinâmicas naturais do local onde se está. 

Se isso acontecer, o bushcraft terá se esvaziado daquilo que considero o mais importante e bonito da prática: uma relação saudável com a natureza, com benefícios para o ser humano e para o mundo natural.

Foto do Autor

Giuliano Toniolo

Escritor, professor e instrutor de sobrevivência e bushcraft, produz conteúdos para diversas plataformas, sendo um dos principais responsáveis pela divulgação do bushcraft no Brasil, desde 2008, através de seu canal no YouTube e escola mateira Mestre do Mato.